Está diariamente nas manchetes dos jornais: as interceptações telefônicas ilegais chegaram até a cúpula do poder. Tem boi nas linhas de banqueiros, parlamentares, chefes de gabinete e até do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). O direito humano à privacidade é sistematicamente violado. A CPI dos grampos divulgou que, em 2007, as empresas de telefonia realizaram mais de 400 mil escutas; a Comissão Nacional de Justiça (CNJ), por sua vez, afirmou que existem 11.846 linhas sendo monitoradas no momento. Enquanto acompanhamos de perto o debate — e eventualmente as trocas de acusações — entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o Estado brasileiro responde na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA justamente por sua responsabilidade em um caso de grampo ilegal.
O caso é de 1999 e aconteceu no Paraná. Policiais militares pediram autorização judicial para grampear uma linha telefônica de lideranças do MST. O pedido, por si só, já era completamente ilegal, uma vez que a investigação de infrações penais não compete à Polícia Militar. Ilegal, também, foi a atitude da juíza da comarca do município de Loanda, que acatou imediatamente o pedido simplesmente anotando na margem da solicitação: “Defiro. Oficie-se”. O magistrado teria, obrigatoriamente, que fundamentar sua decisão por escrito, explicando as circunstâncias que tornam a necessidade de uma interceptação telefônica maior que o direito à privacidade. Além disso, o juiz deve, por lei, comunicar a autorização de escuta ao Ministério Público, mas a juíza Elisabeth Kather ignorou também essa norma.
Prosseguindo as ilegalidades, a interceptação, que havia sido autorizada apenas para uma linha telefônica, foi estendida, por livre vontade da Polícia Militar, a outra linha, também utilizada por lideranças do MST. O período autorizado também foi extrapolado, totalizando 49 dias de gravações. Por fim, para coroar todas as irregularidades, o então secretário de Segurança do estado, Candido Manuel Martins de Oliveira, convocou uma coletiva de imprensa para a divulgação do conteúdo das fitas em trechos editados que distorciam as declarações dos grampeados.
Todos os envolvidos foram inocentados. Rememorar esse caso é comprovar que, há quase 10 anos, já era do conhecimento da imprensa e da classe política a existência de grampos ilegais feitos com clara motivação política, comprovada atuação de agentes do Estado e a conivência do Poder Judiciário, que possibilita a impunidade. A pergunta inevitável é: por que só agora esse tema passou a ser preocupação nacional? Talvez uma explicação seja a simbólica distância entre o chefe máximo da última instância judiciária do país e os representantes de movimentos sociais e da sociedade civil organizada. A indignação de hoje inexistiu em 1999, o que sugere uma marcada distinção: no Brasil, parece que existem “grampeáveis” e “não-grampeáveis” — bem como “algemáveis” e “não-algemáveis”.
O caso levado à Corte Interamericana evidencia também a perseguição e criminalização dos movimentos sociais. O envolvimento do Poder Judiciário com interesses de poderes locais é recorrente e fundamental para a impunidade e para o sucesso dessa estratégia de desarticulação da sociedade civil. A juíza Elisabeth Kather, por exemplo, é aquela que foi flagrada pela imprensa comemorando um despejo de sem-terras com fazendeiros. Alguns anos depois foi condecorada pela Assembléia Legislativa com o título de cidadã honorária do estado do Paraná. Hoje, promovida por antigüidade e merecimento, é juíza de Londrina.
A lei de interceptações orienta que somente seja violado o direito à privacidade quando esgotadas as possibilidades de produção convencional de provas e quando exista a argumentação da proteção de um “bem maior” (evitar homicídios, libertar reféns...) que justifique esse artifício investigativo. A autorização judicial deve ser criteriosa, justificada e estritamente de acordo com o que manda a lei e a Constituição. A violação do direito à privacidade é gravíssima e deve ser combatida, é evidente o descontrole institucional sobre as escutas telefônicas. A discussão sobre grampos ilegais é fundamental para a construção de uma democracia sólida, mas deve ser feita com a intenção de proteger o direito de todo cidadão, não apenas de uma parcela da sociedade. (C.B)
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