Os perigos da demonização da PF


O corpo burocrático do Estado tende a reivindicar a representação da racionalidade, mas sequer a racionalidade é neutra. A Constituinte de 1988 deu autonomia ao Judiciário e ao Ministério Público e aumentou os controles sobre um aparelho policial hipertrofiado pela ditadura, obrigando a sua profissionalização. Ao longo dos 20 anos de amadurecimento democrático das instituições, ora uma, ora outra, avança sobre o espaço das demais, reivindicando para si a capacidade de agir racionalmente em nome do Estado.

É possível em cada uma das unidades da Federação mapear conflitos entre instituições - ou alianças eventuais - e, ao longo de suas cadeias hierárquicas, apontar acúmulo ou esvaziamento de poder em instâncias estaduais e federais. O episódio da prisão e soltura dupla do empresário Daniel Dantas - prisão dupla pelo juiz de primeira instância, Fausto de Sanctis; soltura dupla pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes - é a personificação do conflito. E a mostra efetiva de que, se em algum momento as instâncias inferiores da Justiça, o MP e a Polícia Federal (PF) tiveram protagonismo em questões nacionais importantes, ele vem sendo gradativamente esvaziado em favor de uma concentração de poderes nas mãos da mais alta corte judiciária do país.

O ativismo judicial, defendido por parcela da opinião pública como uma garantia de que a "racionalidade" do STF conteria a "irracionalidade" da ação política do Legislativo, produziu outras crias. O Supremo ocupou cada vez mais espaços - hoje não apenas tem o instrumento constitucional da súmula vinculante, mas desfrutou (pelo menos até agora) de uma legitimidade autoconferida por um entendimento do que é o "clamor público", e com esse mandato promoveu a adequação das leis à sua própria racionalidade. A reação dos juízes contra a decisão do presidente do STF, acompanhada por outra igual dos procuradores - e de uma contra-reação dos advogados e defensores públicos - mostra que também a racionalidade do aparelho burocrático do Estado é política. Pode não ser partidária, mas é política.

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