Consumada entre o Natal e o Ano Novo, a demissão do delegado Paulo Lacerda e de toda a cúpula da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) estava decidida no início do segundo semestre de 2008. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva procurava apenas uma saída honrosa para Lacerda, o delegado que, no comando da Polícia Federal, no primeiro mandato, fora o responsável pelas mais espetaculares operações de combate à corrupção desencadeadas pela PF.
A mais espetacular operação da PF, em julho do ano passado, está na origem da queda de Paulo Lacerda, então já no comando da Abin. Trata-se da Operação Satiagraha, aquela que prendeu o banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity. Na esteira da Satiagraha, Lula tomou conhecimento não só de que a Abin foi além de suas atribuições e do que reconhecia ter feito, ao prestar contas ao presidente, como também que agentes, ex-agentes do Estado e detetives particulares estavam envolvidos numa teia que espionava o governo e o PT.
Um ano antes, Lula já ouvira falar da trama de um companheiro desde os tempos em que presidiu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Em 2008, o indício da ação dos arapongas foi o grampo de uma conversa entre o chefe de gabinete do presidente, Gilberto Carvalho, e o advogado e ex-deputado Luiz Eduardo Greenhalgh. No telefonema, Greenhalgh avisa que um de seus clientes estava sendo seguido no Rio por homens que se diziam da Abin e questiona o comportamento do delegado Protógenes Queiróz, encarregado da Operação Satiagraha. Esse grampo, segundo apurou o Valor, foi realizado antes de os telefonemas do advogado passarem a ser monitorados.
Era evidente que o grampo estava no telefone de Gilberto Carvalho. Fontes que tiveram acesso às investigações, desde o início, disseram ao Valor que outros ministros, entre os quais Dilma Rousseff (Casa Civil) e Antonio Palocci (ex da Fazenda) tiveram seus telefones grampeados. O ex-ministro José Dirceu era grampeado desde antes de sua ruidosa saída do governo. Mesmo longe do Palácio do Planalto, Dirceu continuava sendo monitorado, como revela um episódio ocorrido já em 2008, que é do conhecimento dos principais colaboradores do presidente.
O mesmo agente que informara o "companheiro" de Lula sobre a ação de colegas seus nos bastidores dos órgãos de informação e repressão, queixou-se de que não fora levado a sério, na primeira conversa, mas avisou: "Eles agora estão planejando arrombar o escritório do José Dirceu". O amigo de Lula tentou contatar Dirceu, o que só conseguiu duas semanas mais tarde. Ao lhe relatar o aviso, Dirceu abriu a pasta e lhe mostrou uma ocorrência policial feita dias antes dando conta da invasão de seu escritório.
"A porta não foi arrombada e levaram apenas a CPU do computador", escreveu José Dirceu em seu blog na internet, quando a história vazou, em setembro do ano passado. "Os 'ladrões' não se interessaram por mais nada. Minha desconfiança sobre a natureza do arrombamento se transformou em certeza quando soube por um amigo advogado, que ouviu de policiais que queriam me envolver, a qualquer custo, na Operação Satiagraha".
Outras pessoas ligadas ao presidente e ao PT teriam sido investigadas. Entre elas Lurian, filha de Lula, e os então prefeitos de Diadema, José de Filippe, de Guarulhos, Elói Pietá, e de Osasco, Emídio de Souza, todos na Região Metropolitana de São Paulo.
Nos desdobramentos da Satiagraha também caiu uma lenda: a de que o Guardião, o poderoso equipamento de escuta telefônica da Polícia Federal, capaz de monitorar milhares de conversas, não podia ser apagado: pelo menos três diálogos foram substituídos por chiados: dois do advogado Luiz Eduardo Renal - um com Gilberto Carvalho e outro com o ministro Tarso Genro (Justiça) - e o terceiro de um governador estadual para o empresário Naji Nahas (também preso na Satiagraha).
Além de mais de 80 agentes da Abin usados na Operação Satiagraha, também detetives particulares foram contratados, entre eles Elói de Lacerda, um investigador particular com passagens pelos concorrentes do Opportunity e de empresa de investigação que teria sido contratada pelo próprio Daniel Dantas. Segundo as informações que mais tarde chegaram ao governo, até um arquiinimigo de Daniel Dantas, seu ex-sócio Luiz Roberto Demarco, atuou como analista dos e-mails do Opportunity (a Abin não teria alguém com qualificação suficiente para a tarefa).
As notícias que chegavam a Lula davam conta de descontrole na Polícia Federal, mas também na Abin. Num primeiro momento, Paulo Lacerda negou o envolvimento institucional da agência na Operação Satiagraha, coisa talvez de dois ou três agentes. Depois foi aos poucos ajustando a versão. Por fim sabia-se que mais de 80 agentes da Abin foram acionados por Protógenes na operação. Uma operação, aliás, cujo desenvolvimento só ocorreu graças ao apoio prestado por Paulo Lacerda quando a nova direção da PF retirou os recursos de Protógenes por não saber o que ele estava fazendo.
Na origem da Satiagraha, Paulo Lacerda ainda estava na PF. Tratava-se de investigar a origem de uma reportagem de "Veja" sobre contas no exterior que seriam mantidas por seis personalidades: Lula, José Dirceu, Antonio Palocci, Márcio Thomaz Bastos (então ministro da Justiça), o senador Romeu Tuma (PTB-SP) e o próprio Paulo Lacerda. Quando foi convidado a trocar a PF pela Abin, Lacerda disse a Lula que a única investigação que gostaria de continuar tocando era sobre a publicação de "Veja", que se atribuía então a um dossiê montado por Dantas. Lula teria respondido: "Tudo bem, eu também estou nessa reportagem".
A operação ganhou então o carimbo de "interesse do presidente" e Protógenes passou a agir com autonomia. Ele entrou no radar da PF quando agentes da Abin foram avistados na sala do Guardião. Questionado por seus superiores, o delegado não quis revelar a natureza e o objetivo de sua investigação. No escuro, o diretor-geral da PF, Luiz Fernando Corrêa, decidiu retirar os recursos de Protógenes. O delegado então recorreu a Paulo Lacerda.
A Operação Satiagraha ocorreu já no fim daquela que talvez tenha sido a maior disputa societária ocorrida no país, que colocou em confronto Daniel Dantas com seus sócios na Brasil Telecom, o Citibank e os fundos de pensão. O governo estava dividido em relação ao assunto, mas o Palácio do Planalto admitia a criação de uma grande companhia telefônica nacional - a oportunidade surgiu com uma inacreditável, para a maioria do governo, reviravolta na disposição de Dantas em se manter na área. O porta-voz da novidade foi o advogado Greenhalgh.
Sem conseguir a reeleição a deputado federal em 2006, no ano seguinte Greenhalgh voltou a advogar. Ao montar a sua nova carteira de clientes, aceitou representar os interesses de Daniel Dantas, que o procurara dizendo que se cansara de ter a polícia nos seus calcanhares e da disputa na Justiça, que já envolvia dezenas de ações, e estava resolvido a deixar a área de telefonia. Se Dantas deixava de ser um problema, muito melhor, pensava-se no governo, apesar das dúvidas sobre a sinceridade da decisão do banqueiro.
Advogado de presos políticos, no regime militar, e do MST, mais recentemente, Luiz Eduardo Greenhalgh trabalhando para Daniel Dantas era algo que soava estranho à maioria do PT. O próprio Lula pediu que Greenhalgh tomasse cuidado quando, numa conversa, perguntou se ele estava advogando e Greenhalgh respondeu que sim, mas que ampliara sua "base social" - ou seja, passara a ter Daniel Dantas como cliente.
Sem emitir juízos sobre a questão, sugeriu que Greenhalgh falasse com Dilma Rousseff e com o presidente da Previ, Sérgio Rosa, sobre as novas intenções de Dantas. Afinal, elas vinham de encontro ao interesse do governo de criar uma telefônica com capital nacional. Dilma, que também duvidava de Dantas, pediu que ele falasse com Sérgio Rosa, o presidente da Previ, que chegou a sugerir que Greenhalgh estava sendo enganado por Dantas. Rosa era contra e tentou boicotar o acordo para a venda das ações de Dantas. O que acabou acontecendo antes do fim do primeiro semestre de 2008, mas não interrompeu a Operação Satiagraha. De Raymundo Costa do jornal Valor
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