Com a máxima cautela, o governo federal anunciou a alteração das regras de rendimento da caderneta de poupança. O assunto tinha forte componente político e o presidente Lula manifestou, por mais de uma vez, extremo cuidado em relação ao tema. Anteontem o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, falando em audiência pública da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional, arriscou enfático comentário: "A caderneta de poupança é sagrada", quando todos no governo sabiam que mudanças viriam. Essas mudanças, porém, tinham limites rígidos, fixados pelo presidente de que a poupança deveria continuar "instrumento de proteção da economia popular", como também disse Bernardo no Congresso, antes de reafirmar que a questão não podia mais permanecer em aberto e "dar margem à especulação".
Este era uma parte do dilema do governo, a tensão e o uso do assunto pela oposição. Porém, também era inadiável a decisão sobre o rendimento da caderneta, porque esta não poderia superar a remuneração aferida pelo investidor em fundos de renda fixa ancorados na taxa Selic. Desse modo, em entrevista coletiva, presentes o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central, o governo comunicou a decisão de taxar aplicações em poupança acima de R$ 50 mil. Pelas novas regras, abaixo desse valor os investimentos no "instrumento de economia popular" continuarão isentos de impostos. Os números da caderneta sugerem que há excessos de interpretação nesse critério; atualmente, existem 89,5 milhões de cadernetas no País, com depósitos somando R$ 270 bilhões. Deste total, apenas 3.822 delas têm aplicação superior a R$ 1 milhão. Se forem aprovadas pelo Congresso Nacional, as possíveis taxações sobre essas cadernetas devem atingir menos de 1% do total, porque 99% das cadernetas têm aplicações entre R$ 100 e R$ 50 mil, sendo que 86% delas estão na faixa até R$ 20 mil.
A nova tributação na poupança valerá para o período do rendimento a se iniciar em janeiro do próximo ano, o que significa que o recolhimento de impostos na fonte para esse tipo de instrumento só ocorrerá em fevereiro. A retenção do imposto será por Cadastro de Pessoa Física, dificultando a abertura de diversas contas pelo mesmo investidor. A soma de todos os rendimentos na poupança, incluindo dependentes, sofrerá tributação. A retenção na fonte, por sua vez, será feita com base na tabela do próprio Imposto de Renda, com caráter progressivo: toda vez que a taxa básica de juros ficar abaixo de 10,25% haverá tributação progressiva para aplicações superiores a R$ 50 mil. Por outro lado, a pressa do governo vinha também da percepção de que o mercado já precificara a futura queda da taxa básica de juros. Embora a oferta de crédito não tenha voltado ao consumo, as taxas de juros cobradas pelos bancos já sinalizam a percepção de que a Selic irá cair forte. Este era o principal fator que impunha pressa para o governo alterar o rendimento da cadermeta.
A poupança é um instrumento peculiar da cena econômica brasileira. É um fato que esse instrumento perdeu lugar em uma sociedade com moeda estável. Se o País mantém-se como uma economia moderna, estável, com inflação civilizada, não há necessidade de um instrumento de economia popular com juros privilegiados e garantidos por lei. Não há dúvida de que a caderneta de poupança é um resquício da era em que a economia brasileira era fechada, perspectiva que não está mais no horizonte, nem econômico nem político, dos brasileiros. A própria idéia de usar regras da poupança para impedir movimentos especulativos cheira a dispensável anacronismo. Só foi preciso ressuscitar certos mecanismos tributários de vigilância porque a poupança continua pensada como "sagrada". Se o País evoluir ainda mais e a taxa de juros assumir perfil das demais economias industrializadas, com juros baixos, o que se fará com a poupança? Ela será mantida como um totem, inacessível à lógica da racionalidade econômica?
É um fato, e é preciso reconhecê-lo, que a poupança foi essencial para o desenvolvimento de uma política habitacional, além de atender ás necessidades do pequeno poupador. Porém, essas funções eram inerentes a uma sociedade que não sabia o que fazer para repor as perdas inflacionárias. O Brasil precisa conviver melhor com a idéia de que esse tempo, o das constantes instabilidades, já passou. O medo do governo de mexer na poupança porque era necessário e o sucesso das intrigas e especulações sobre confisco feitas pela oposição indicam que esse mentalidade de ontem ainda não acabou na elite política. Esse avanço no aceitar da modernidade econômica é inadiável. E obrigatório.
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