A feira milionária que tira o sono de Kassab


Uma feira que, de madrugada, atrai cerca de 20 mil visitantes de todos os cantos do país para São Paulo tem tirado o sono do prefeito Gilberto Kassab (sem partido). Focado em acabar com a venda de produtos piratas e o comércio ilegal na cidade, o prefeito encontra dificuldade para regularizar a feira e seus 4.573 boxes, segundo a contagem oficial.

A Feirinha da Madrugada, como é conhecida, ocorre há mais de dez anos em São Paulo. Foi criada para acomodar as insatisfações geradas por duas pressões - a da população contra os ambulantes e a destes para manter seus negócios. E transformou-se num permanente barril de pólvora sob os alicerces da política paulistana.


Atrai 6 mil comerciantes, 3 mil a menos do que os que movimentam a feira de Santa Cruz do Capiberibe, no agreste pernambucano, considerada a maior do país. De 400 a 500 ônibus chegam por dia à feira do interior de São Paulo e de outros Estados. Nas datas comemorativas, eles passam de 600. Grande parte dos viajantes é de lojistas, que adquirem os produtos para revender em suas cidades.

Faturamento mensal é superior ao de grandes shopping centers da cidade como o Iguatemi

É um faturamento de fazer inveja a shopping center. O diretor da Associação do Comércio Informal do Micro e Pequeno Empreendedor (Acimpe), Neilson Paulo dos Santos, representante dos ambulantes, estima que sejam vendidos cerca de R$ 40 milhões por dia - o que dá R$ 1 bilhão por mês. "É um cálculo difícil porque quase todos os produtos não têm nota fiscal", diz.

Presidente da subcomissão da Câmara de Vereadores para estudos sobre a Feira da Madrugada, o vereador Adilson Amadeu (PTB) avalia que a quantia é bem menor. "Gira em torno de R$ 200 milhões por mês", afirma. O número ainda é alto. O shopping Iguatemi em São Paulo, por exemplo, tem uma média mensal de faturamento de R$ 108 milhões.

Camelôs dizem que é possível tirar até R$ 2 mil a R$ 3 mil líquidos nos dias de melhor movimento, as madrugadas de segunda-feira, terça-feira e sábado. "Os que conseguem mais dinheiro são os que vendem roupas por atacado para lojistas de fora", diz Antônio Andrade, que vende bonés por R$ 20 há cinco meses na Rua Oriente.

Os chineses entraram no negócio há pouco tempo e se destacam com roupas de melhor qualidade e preço mais baixo, importadas diretamente de seu país natal. São eles que movimentam as maiores quantias, contam ambulantes. Há também muitos bolivianos, paraguaios e peruanos rivalizando com os brasileiros.

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Tanto dinheiro atrai interesses e gera discórdias. A mais notória delas envolveu o PR do deputado federal Valdemar Costa Neto, acusado de cobrar propina dos comerciantes da feira. Há ainda denúncias de milícias armadas que cobram aluguel dos lojistas, atuação das máfias chinesa e coreana e destruição de prédios históricos do Pátio do Pari - a área pertencia à extinta Rede Ferroviária Federal SA (RFFSA) e é tombada pelos órgãos de defesa do patrimônio.

Em 2008, 11 pessoas foram presas, acusadas de envolvimento na Máfia dos Fiscais. A operação levou à renúncia do subprefeito da Mooca. Há dois meses seu substituto também caiu em meio a uma investigação da Polícia Civil.

Os problemas nasceram com a feirinha. No início os camelôs ficavam restritos à Rua 25 de Março, tradicional comércio popular da cidade. O evento já ocorria de madrugada, o que incomodava lojistas que encontravam as ruas sujas pela manhã e tomadas por ambulantes que esticavam a estadia para aproveitar novos clientes.

Os lojistas entraram com ação para que a ex-prefeita e hoje senadora Marta Suplicy (PT) retirasse a feira do local. A Justiça julgou procedente o pedido e ameaçou a petista com multa de R$ 100 mil para cada dia que a decisão não fosse cumprida. Em 2003 ela deslocou os quase 6 mil ambulantes para o Pátio do Pari, a um quilômetro dali.

A petista tentou arrendar o terreno para realizar a feira sem atrapalhar a rotina do bairro. A área usada para o descanso de trens da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA), era ideal para isso - um grande espaço de 60 mil metros quadrados, que serviria de estacionamento para os ônibus e abrigaria com conforto todos os camelôs.

Comércio vai das 2h às 7h da manhã e atrai cerca de 500 ônibus por dia do interior e de outros Estados

Porém, o Ministério dos Transportes, que administra a RFFSA, já tinha contrato de aluguel do terreno com uma empresa desde 1994. A GSA Serviços Gerais e Transportes, do carioca Geraldo Amorim, pagava R$ 130 mil por mês, o que inviabilizou a transação com a Prefeitura na época.

Dois anos depois, quando o ex-prefeito José Serra (PSDB) foi eleito, ele tentou regularizar a feira, que tornava caótico o trânsito da região e era um problema para a fiscalização por estar espalhada por várias ruas do Brás, bairro da região central de São Paulo.

O tucano proibiu os ônibus de viagem de parar nas vias e buscou alternativas de estacionamento. Um local para estacionar os ônibus era importante para concluir o Circuito de Compras, projeto da prefeitura que pretendia atrair visitantes de outros municípios para o comércio da região central da cidade, como a Rua 25 de Março, o Mercado Municipal e o Bom Retiro, bairro especializado na confecção de roupas.

Voltou, então, o interesse no Pátio do Pari. "O Andrea Matarazzo [na época subprefeito da Sé] começou a conversar comigo. Ele me disse: vamos multar esses ônibus. Consequentemente, se você tá em frente, eles vão começar a procurar o seu estabelecimento", diz Amorim.

Matarazzo confirma ter conversado com o empresário, mas nega que tenha incentivado o projeto. "Ele me procurou. Na época era uma ideia muito boa. Acolheria os caminhões que ficavam em torno do Mercadão e os ambulantes cadastrados. Mas não houve interferência nem estímulo da prefeitura porque era um empreendimento privado", afirma o hoje secretário estadual de Cultura.

Representante dos comerciantes, Neilson dos Santos tem versão diferente. Segundo ele, que era do Sindicato dos Camelôs no período, houve confronto da polícia com os ambulantes que não queriam sair da rua. "Em 11 de agosto de 2005 [logo depois da inauguração da Feirinha da Madrugada dentro do Pátio do Pari], os camelôs quebraram tudo na [Rua] Oriente. Prenderam 21 pessoas ligadas ao sindicato. O governo queria nos levar para dentro de um espaço fechado e tínhamos a cultura de querer fazer as coisas na rua", lembra.

Independentemente de quem foi o incentivador, o comércio só prosperou dentro do terreno quase um ano depois da inauguração, quando os ambulantes viram a oportunidade de ficar mais próximos dos clientes que vinham de ônibus.

O crescimento ocorreu paralelo a chegada do prefeito Gilberto Kassab ao Paço Municipal, em março de 2006, com a renúncia de Serra para concorrer ao governo de São Paulo. Formado politicamente na Associação Comercial de São Paulo (ACSP), entidade em que começou a carreira nos anos 1980 e da qual é conselheiro até hoje, Kassab intensificou as ações de combate à pirataria e ao comércio ilegal iniciadas na gestão do ex-prefeito Celso Pitta (1997 a 2000), da qual ele foi secretário de Planejamento.

Dois meses depois de assumir, o prefeito sancionou lei que punia os comerciantes que vendessem mercadorias sem nota fiscal com a cassação do alvará ou do registro - os ambulantes precisam de um Termo de Permissão de Uso para poderem trabalhar na cidade.

Houve um cerco ao comércio nas ruas e os camelôs foram retirados de áreas onde tradicionalmente atuavam, como o Largo da Concórdia, também na região central. As ações aumentaram os participantes da Feirinha da Madrugada. Segundo Neilson, mais que dobrou a quantidade de trabalhadores no local desde a fundação, em 2003. A assessoria da prefeitura não informou nem o número de comerciantes que iniciou a feira nem o atual.

O crescimento da feira, e do dinheiro movimentado, fez aumentar a disputa pelo terreno e o interesse de políticos no local. Em 2009, Amorim não teve o aluguel renovado. Ele acusa os deputados federais Valdemar da Costa Neto e Milton Monti, ambos do PR, de serem responsáveis pelo fim do contrato porque ele não quis pagar R$ 300 mil de propina - o Ministério dos Transportes que administrava o terreno, tinha os principais funcionários nomeados pelo PR até estourar escândalo, com demissão de 24 servidores, há dois meses.

Tanto Monti quanto Valdemar disseram, por meio das assessorias, que não comentariam o assunto enquanto não fossem citados pela Justiça. O Ministério afirmou, em nota, que o contrato foi extinto em 2009. Na época o Ministério Público já havia processado o empresário por irregularidades no uso da área, como a construção de prédios de alvenaria dentro do terreno - o que era proibido pelo contrato - e a falta de alvará de funcionamento da feirinha.

Amorim questiona o fim do contrato na Justiça. Segundo ele, o deputado Monti é amigo de Geraldo Barros, sócio da empresa que passou a administrar o terreno depois. A briga foi revelada este ano pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que entregou carta do vereador Agnaldo Timóteo (PR) enviada a Amorim para o Ministério Público (MP). Nela, ele dizia que o empresário não deveria ter "peitado" lideranças do PR e que, por isso, tinha perdido a concessão. Timóteo nega a suspeita de propina.

Com a empresa de Amorim fora do terreno, o Ministério dos Transportes alugou a área, sem licitação, por R$ 150 mil mensais para a Santa Casa da Misericórdia em maio de 2010. A entidade contratou uma administradora para a área de propriedade de um ex-funcionário de Amorim. Ailton Oliveira.

Em julho de 2010, o MP voltou a pressionar os Transportes para realizar a licitação e cancelar o contrato com a Santa Casa. Poucos dias depois, Ailton fundou o Condomínio Novo Oriente e foi eleito seu síndico, responsável por administrar as contas do Pátio do Pari. Para pagar as despesas foi instituída cobrança de R$ 250 por banca. Na gestão anterior, era de R$ 600.

Lei de 2007, mas só aplicada em 2010, tirou dos Transportes e repassou à Secretaria de Patrimônio da União (SPU) a propriedade do Pátio do Pari. A Prefeitura de São Paulo voltou a solicitar a posse do terreno e assumiu a guarda provisória em novembro de 2010. A administração passou a fazer a segurança e limpeza do local e proibiu, por decreto, a cobrança de taxas dos lojistas.

O Condomínio Novo Oriente, porém, continuou com a mensalidade. "Não é uma taxa. É um rateio voluntário das despesas que a Prefeitura não paga, como água, luz, equipes de apoio aos visitantes e motoristas de ônibus", diz Ailton, que estima os gastos em aproximadamente R$ 800 mil por mês.

"Há muitos inadimplentes, principalmente depois que o prefeito disse que não era para pagar mais", conta Ailton. O Valor conversou com pelo menos cinco comerciantes que confirmaram não haver qualquer forma de intimidação contra os que não pagam. Fora do Pátio, entretanto, há seguidas denúncias de achaques de máfias que controlam os pontos de venda e cobram propina dos ambulantes.

A parte de fora da feirinha, onde ficam mais de 1 mil comerciantes que não conseguem espaço dentro do Pátio, não recebe a mesma atenção da prefeitura. Ação deflagrada no dia 5 de agosto para combater a pirataria, a presença de comerciantes sem registro e a venda de boxes - há lojistas com mais de 100 unidades, quando o objetivo era atender pessoas de baixa renda em um projeto social - ficou restrita à parte da feirinha que fica dentro do terreno.

Enquanto comerciantes protestam contra o prefeito por ele manter fechada a área e impossibilitá-los de trabalhar, a feirinha continua ocorrendo normalmente nas ruas do entorno.

Além da revolta com os ambulantes, a fiscalização também conseguiu causar desgaste com a Câmara dos Vereadores. A Guarda Civil Metropolitana (GCM) barrou comissão de vereadores, formada por integrantes da subcomissão, pelo presidente da Casa, José Police Neto (sem partido), e pelo líder do governo, Roberto Tripoli, de entrar no terreno para acompanhar a ação.

A situação piorou quando o secretário de Segurança Urbana, Edsom Ortega, fez os parlamentares esperarem mais de duas horas até permitir a entrada. A demora, considerada "desrespeito ao Legislativo" pelos vereadores, levou a convocação do secretário à Câmara, onde ele ouviu duras críticas. Os mais exaltados defenderam não votar nenhum projeto de interesse do prefeito até a demissão de Ortega - promessa até agora cumprida. A maioria não é tão radical, mas exige pedido de desculpas público do secretário.

Segundo o prefeito, cerca de 20% dos mais de 4 mil boxes vendiam produtos piratas ou não tinha cadastro na prefeitura. Os itens sem nota fiscal estão sendo apreendidos e os boxes com registro irregular serão tomados pelo Poder Público e depois sorteados. A ameaça é de que, da próxima vez, os comerciantes pegos com produtos piratas serão expulsos.

Os comerciantes se espalham pelas Ruas Oriente, São Caetano e Monsenhor de Andrade, com cerca de 300 metros de comprimento cada, no centro da cidade.

Eles formam de duas a três fileiras de bancas de madeira no meio da rua, com lâmpadas fluorescentes ligadas a geradores e baterias de carros para chamar a atenção dos clientes. Mesmo com o tempo bom, alguns armam guarda-sóis coloridos para proteger do sereno e destacar a barraca das demais. Fileiras de manequins exibem as roupas da moda, a exemplo dos shoppings mais badalados da cidade.

O comércio na rua tem início às 2h e vai até às 7h, quando todas as bancas devem estar desmontadas para não atrapalhar o trânsito. A Feirinha também ocorre dentro do Pátio do Pari, onde estacionam os ônibus que vem de outros Estados. Lá as bancas de madeira dão lugar a boxes de alvenaria e as vendas vão até mais tarde - alguns ficam até o fim do horário comercial à espera de clientes.

Lojas aproveitam o movimento noturno e, depois de um intervalo fechadas, voltam a abrir durante a madrugada. Há mais de uma dezena de galerias no entorno, o que tornou mais caro alugar um prédio na região, antes degradada. Uma sala pequena, já distante do principal ponto de concentração dos comerciantes, sai por R$ 4,5 mil ao mês.

A maioria dos produtos da feira é de roupas e acessórios fabricados por pequenas empresas familiares ou por confecções que exploram o trabalho de bolivianos que vivem ilegalmente no Brás, bairro do centro de São Paulo. Ali é possível encontrar de tudo: calças jeans, camisetas, bonés, bolsas, sapatos, cintos, chapéus, relógios, meias, lingeries.

Cópias de camisetas de "marca", como Adidas e Oakley, são vendidas a R$ 7,50, enquanto os modelos mais baratos das originais não saem por menos de R$ 50. Itens sem marcas famosas, como blusas femininas e sapatos, também são vendidos por valores muito menores do que o de lojas convencionais. São imitações de boa qualidade.

Kassab tem planos ambiciosos para a feira. Quer construir no terreno um shopping popular, com investimento da iniciativa privada, amplo estacionamento para ônibus de viagem e duas torres de hotéis. O projeto foi anunciado em fevereiro, mas o município ainda aguarda a posse definitiva da área antes de começar a licitação.

A ideia encontra resistência em parte dos trabalhadores do local. "Agora que o projeto está funcionando, o prefeito quer passá-lo para investidores, que vão esquecer o cunho social da feirinha. Será que os comerciantes vão conseguir alugar as lojas pelo mesmo preço que pagam hoje?", questiona Ailton, administrador do Condomínio Novo Oriente.

Já Neilson, da Acimpe, vê com bons olhos a proposta. "Apresentamos o projeto de um shopping popular há mais de dois anos. Mas, infelizmente, o prefeito não conversa com a gente e nos vê como bandidos", critica. Procurada, a prefeitura não designou ninguém para dar entrevista.

Um comentário:

  1. Finalmente uma reportagem que chega perto da realidade da feira...

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