Quem representa o povo?

É louvável a iniciativa do governo, sob a responsabilidade do ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, de promover debate sobre a modernização das relações entre capital e trabalho no Brasil. Trata-se de tarefa hercúlea, mas absolutamente necessária. O sexagenário regime trabalhista aposta no trabalho barato e desqualificado e, ao mesmo tempo, custa caro às empresas e, portanto, à sociedade. Já passou da hora de ser reformado.

"De todas as iniciativas em que estou engajado, talvez seja essa a mais complicada e a que tem maior alcance para o país", disse Mangabeira a esta coluna. Nos últimos oito meses, ele se reuniu amiúde com lideranças sindicais e empresariais para discutir o tema. Ontem mesmo, recebeu durante uma hora e meia em seu gabinete, em Brasília, Jorge Johannpeter Gerdau.

O diálogo com a elite dos trabalhadores e dos empresários não é propriamente um desafio. O desafio é encontrar convergências entre os dois grupos e, a partir daí, fazer com que elas atendam aos interesses da maioria excluída e desorganizada. Se a maioria dos trabalhadores está fora do sistema, atuando no mercado informal, sem a proteção da lei, quem a representa numa discussão que interessaria primordialmente a ela?

O debate corporativista fracassou. Ele aconteceu no Fórum Nacional do Trabalho, criado pelo presidente Lula em seu primeiro mandato justamente para debater a reformulação dos regimes trabalhista e sindical. Eleito presidente, Lula, um ex-sindicalista, acreditou que trabalhadores e empresários, reunidos sob a batuta do governo, chegariam a um consenso sobre a necessária superação da Era Vargas. Enganou-se.

Mangabeira diz que uma mudança substancial no regime trabalhista não exige consenso entre patrões e empregados, mas uma convergência sobre temas importantes. O que ela exige de fato é uma grande base de apoio no país e no Congresso. Mas, se já é difícil encontrar convergência entre os atores organizados, mais complicado será construir o apoio parlamentar e na sociedade. "Isso tem que ser construído à luz da dificuldade que o contraste com o exemplo de Vargas demonstra - ausência de crise e democracia. Temos uma situação radicalmente diferente da situação que Getúlio operou. Não sabemos se num ambiente como o atual é possível", reconhece o ministro.

Em qualquer país do mundo, a mudança do modelo institucional das relações entre capital e trabalho não se dá de forma pacífica. Nenhuma nação fez isso sem grandes lutas. Trata-se de uma estrutura que mexe diretamente com a distribuição da renda, da riqueza e do poder.

"Não é concebível que haja uma transformação desse modelo sem conflito. O vital é saber quanto conflito. Até certo ponto, o conflito, além de ser inevitável, será benéfico. Além de certo ponto seria incompatível com a mudança. Não sabemos se vamos conseguir ficar aquém daquele ponto ótimo. Tudo isso é um experimento", confessa Mangabeira.

Democracia vai além das corporações, diz ministro

O ministro rejeita, com veemência, o papel de sistematizador de propostas alheias. Acha que cabe ao governo e ao Congresso, em nome da maioria excluída, arbitrar e propor mudanças, ouvindo antes as elites dos empresários e dos trabalhadores. Uma proposta de transformação, insiste, só avançará se tiver o apoio de grande convergência entre os dois grupos.

"Ouvi-las não significa, porém, delegar a essas lideranças a decisão a respeito do desfecho. A cortesia (de ouvir centrais e sindicatos patronais na primeira fase do debate) pode levar ao mal-entendido de que temos uma espécie de colégio eleitoral que vai definir as futuras leis do trabalho. Não pode ser assim. Isso não seria democracia, e democracia não é corporativismo", pondera. "É óbvio que não estou funcionando passivamente como secretário e anotando o que eles têm a dizer."

Lula não é mais um líder sindical, mas um líder popular, nacional. Isso, em tese, pode ajudar no projeto de mudança. Embora dê essa impressão em muitos casos, o presidente não deve governar apenas para os metalúrgicos de São Paulo e os sindicalistas em geral, ou seja, para a minoria organizada. Na reunião da semana passada com as centrais, quando foram identificadas as primeiras convergências, Lula se mostrou, segundo Mangabeira, entusiasmado com a perspectiva de uma transformação profunda do regime trabalhista.

O ministro, claro, está ainda mais animado. Encara sua passagem pelo governo como uma chance de ouro para imprimir suas idéias, mas não só isso - ele quer vê-las implementadas. Tendo atuado anteriormente como assessor e guru intelectual de três líderes nacionais - Ulisses Guimarães, Leonel Brizola e Ciro Gomes -, só agora, na gestão de Lula, de quem foi crítico mordaz durante a crise do mensalão, ocupa cargo de destaque.

A caminhada é longa. No início dos debates, as centrais desconfiaram que toda a discussão era para flexibilizar os direitos trabalhistas, algo que interessa aos empresários. Depois, concordaram que, da forma como está, o regime de Vargas exclui mais do que inclui trabalhadores, mas, ao mesmo tempo, julgaram que acabar com a contribuição patronal sobre folha seria expor a previdência a ataques e mudanças radicais (nas regras das aposentadorias). Adiante, os sindicalistas sugeriram a taxação do faturamento das empresas como um sucedâneo da contribuição patronal. Depois, a maioria das centrais aceitou o fato de que taxar o faturamento penalizaria as empresas intensivas em capital, as mais produtivas. Surgiu, daí, a primeira e mais importante convergência até agora- a de que a contribuição sobre folha deve ser substituída por um imposto geral.

"Confesso que fiquei surpreso com a convergência alcançada, mas tenho que qualificar isso: é muito mais fácil prestar-se a essa convergência em reuniões fechadas. A dinâmica das centrais pode mudar diante dos sindicalizados", diz Mangabeira.

Ao lançar um debate crucial para o país, o governo Lula, na prática, criou um teste para si mesmo - ou avança e decide pela maioria ou agarra-se às minorias e governa para poucos.

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